Saúde e Trauma
- filipaanf

- 11 de mai. de 2023
- 6 min de leitura
Atualizado: 12 de mai. de 2023

A Saúde Mental continua a ser pouco valorizada. Porém, nunca se falou tanto dela como na actualidade. Corre o risco de transformar-se num chavão, sem efectivamente existirem melhorias no sector. Até as operadoras de telemóvel se colam a esta tendência para nos enviar mensagem de zelo, pois ao serem associadas às preocupações com a saúde, sabem que as pessoas vão comprar mais os seus produtos. E isto é mercantilismo, não há outro nome! Infelizmente, o paradigma em vigor é o capitalismo. E a Saúde não tem sido prioridade. Sabemos que o acesso a cuidados de Saúde Psicológica está longe de ser aceitável na nossa realidade portuguesa. Continuamos com poucos profissionais da Psicologia no SNS, abaixo do rácio recomendado de 1 psi /5000 habitantes.
Vivemos numa sociedade que se está a tornar “normopata”, polarizada e que convive mal com a diferença. No entanto, apresenta uma tendência social para a patologização e consequente marginalização da pessoa “divergente”. Basta percebermos o aumento dos discursos de ódio e de crimes xenofóbicos no país e no mundo. Importa nesta reflexão, e tendo em conta o caso português, não esquecer alguns legados significativos cujos ecos ainda se fazem sentir. Mesmo que nalgumas situações os ecos possam persistir de forma mais sub-reptícia. É preciso não esquecer a influência religiosa do cristianismo e da ditadura salazarista. Não nos iludamos: a cultura quer o nosso sacrifício para algo maior e de um do outro. O imaginário cristão, com expoente da igreja católica, é feito em nome do sacrifício, sacrifico-me porque alguém se sacrificou por mim. É a mentalidade: se adoecer espero que a outra pessoa também adoeça. No fundo, trata-se do favorecimento da homogeneização e de uma igualdade “inofensiva”. Faz evocar o fenómeno do grande rebanho, como Nietzsche dissertou. E a ditadura salazarista, que não escapou dessa moral de rebanho, colocou enormes privações e puniu severamente o povo na sua livre expressão de autenticidade. Foram tempos de instilação profunda do medo (a nossa emoção mais primitiva), o que se traduziu em desconfiança e insegurança densas (além de problemas de índole sócio-económica e outros). Tornámos-nos um povo acabrunhado. Não será à toa que somos apelidados de “povo dos brandos costumes”. Mesmo depois de termos vivido um libertador 25 de Abril. É incrível o poder traumático e regressivo de uma ditadura (dita dura). É incrível a resistência e a extensão dos seus tentáculos, que mesmo nos casos das vidas de pessoas ditas mais progressistas, se podem fazer sentir de maneiras que não tão óbvias de compreender.
Outro acontecimento de elevada magnitude, recente e este a nível mundial, que possibilitou uma grande reviravolta na vida terrestre foi a pandemia por COVID-19. Por um lado, o medo do desconhecido, quais os seus efeitos no organismo e se haveria cura para o vírus. O medo de contágio acicatou a angústia de morte na generalidade das gentes. Muitas pessoas morreram depois de contrair a COVID-19. Curiosamente, também se instalou a ideia romântica de que era “agora” que os seres humanos e as suas comunidades se iriam unir mais, por estarem todos no mesmo barco. Não foi o que aconteceu. Claro que houve acontecimentos positivos que merecem ser evocados, nomeadamente, o esforço hercúleo dos profissionais da Saúde e da educação que estiveram na linha da frente.
Assimilando as ideias do capitalismo selvagem como paradigma dominante, o desinvestimento na Saúde, em particular da dita “Mental” (como se na prática fosse fácil fazer esta cisão entre mental e físico, biológico, corporal), os legados históricos com efeitos retrógrados e a COVID-19, reflictamos agora sobre o fenómeno do trauma.
Ultimamente este tema tem merecido uma maior atenção, graças ao louvável trabalho do médico Gabor Maté. Foge ao figurino dos médicos e profissionais de saúde com exposição mediática. Não se comporta como um guru. Muito sóbrio, humanizante e compassivo. Consegue olhar para pessoas marginalizadas com uma empatia radical. Usa muito pontualmente o humor, mas consegue transmitir um equilíbrio entre profundidade e leveza sem romancear ou adoçar a realidade, mas transmitindo o seu saber de maneira acessível à generalidade do público. Há um aspecto de ressignificação na sua abordagem que pode ser transformadora. Pode ser, para parte significativa de pessoas, pois parece não haver megalomania de instalar uma panaceia por parte deste homem que viveu uma infância traumática bastante complexa, conseguiu dar a volta e quer ajudar a erradicar o trauma.
O que é o trauma? Podemos dizer que se trata de de uma desconexão do “eu” como mecanismo protector. Este médico defende que não é tanto aquilo que nos acontece, mas mais a forma como algo se desenrola no nosso interior, como resultado do que nos aconteceu. Parece uma e a mesma coisa, só que não. Há acontecimentos que são vividos como traumáticos para umas pessoas, ao passo que para outras não. O trauma molda o cérebro e a nossa visão de mundo, afectando a nossa relação com os outros. Esta é uma realidade amarga. O trauma inflige vergonha sobre o “eu”. É também um fenómeno intergeracional, sendo que hoje se assiste a uma perpetuação veloz do mesmo. A falta de consciência que tem existido sobre o assunto não ajuda, embora existam outros factores concorrentes.
Falar sobre o trauma não é tarefa fácil. Só recentemente se começou conhecer, de forma mais generalizada e com uma compreensão mais profunda, as suas características e os seus efeitos. A transmissão mediática tem ajudado nesse processo. Todavia, na prática, ainda existe muita ignorância e falta de empatia no acolhimento das dores alheias. E a incompreensão do outro pode ser sentida como bastante dolorosa. Em particular, sobre aspectos que muitas pessoas que sofrem tentam compreender com curiosidade e investimento. Porém, há sempre uma sombra que permanece. Não sabemos tudo sobre nós, por melhores leitores que sejamos da nossa história.
Por diversas vezes gozamos e humilhamos o outro nas suas vulnerabilidades. Inferiorizamo-los porque, lá no fundo, há uma necessidade nossa de “estar por cima”. E só temos necessidade de “estar por cima“ quando estivemos ou estamos “por baixo”. Estar bem na nossa pele não deveria significar arrasarmos a pele sensível do outro com a nossa insensibilidade. O que não sabemos sobre nós, por trás da muralha que erguemos, é que mais vulnerável é o descuido e a falta de empatia que temos perante a ferida aberta ou a cicatriz rígida da outra pessoa. O trauma é a raiz das nossas feridas mais profundas, é urgente interiorizar.
Assumir um trauma pode ser bastante libertador para quem o partilha. No entanto, uma má leitura dessa realidade poderá considerar que se trata de vitimização, uma banal tradução do relativismo descuidador (que descuida a dor do outro). Já para não falar das exigências que pesam. Às vezes exige-se mais à pessoa do que aquilo que ela pode dar naquele momento, sem por um segundo se tentar entender que, se ela soubesse como e pudesse dar esse algo mais exigido, faria isso de bom grado. É necessário maior consciencialização e cuidado para evitar infligir dor desnecessária e re-traumatizações.
Por outro prisma, vivemos numa realidade de banalização veloz, onde tudo é romantizável e mercantilizável (“privatizem o sonho” provocava José Saramago). Vai haver alguém que quer fazer do tema do trauma uma bandeira com fins lucrativos, como parece estar a começar a acontecer. Não me refiro a Gabor Maté, mas a algumas entidades que estão a beber dos seus poderosos ensinamentos e a apropriar-se disso para usar em discursos colados, como ratoeiras para apanhar e extorquir as pessoas em maior estado de vulnerabilidade. Estou de acordo que devemos ser uma sociedade informada e esclarecida sobre as questões do trauma. Mas afinal, qual a meta do esclarecimento sobre trauma: enriquecimento de gente com algum tipo de poder ou apoiar pessoas e comunidades em sofrimento, prevenindo a propagação viral de geração em geração de traumas imbricados nas nossas culturas? Cuidado com os predadores.
Este meu texto é um apelo sentido à empatia. Perturba-me o descuido e a desconexão! É preciso olharmos a pessoa real por baixo do trauma. Somos sempre mais que os nossos desequilíbrios, doenças e traumas. Sejamos responsáveis e façamos trabalho interior com curiosidade e sem a altivez de nos acharmos imaculados ou “resolvidos” (essa palavra da moda que nos reduz a equações). Não somos uma coisa nem outra. Podemos (e devemos) amarmo-nos, mas que isso nunca nos faça assumir superioridade. Apenas diferirmos. E ser diferente não é bom nem mau por inerência. Saibamos sim ser pessoas mais conscientes e empáticas.
Aprendamos a escolher melhores líderes, pessoas com inteligência emocional capazes de escolher políticas públicas que realmente beneficiem as populações, decidindo com maior conhecimento e empatia, em prol de um melhor futuro. É urgente apostar na Saúde como um todo e no SNS. Os Orçamentos de Estado deverão ser contemplados com mais verbas. Há que restaurar o SNS e trabalhar para garantir acessibilidade plena aos cuidados de Saúde, onde a Saúde Mental deverá ser parte integrante por deixar de ser a porção pobre de uma clivagem sem sentido. Devemos igualmente valorizar a Educação, a ferramenta da transformação mais poderosa que temos ao nosso dispor. E, decididamente, não podemos deixar escapar um maior zelo pela Cultura e a Arte, pois nem só de realidade vivemos. Temos de sonhar e lutar por um futuro mais digno, onde se possa usufruir de uma vida de qualidade.


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